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A máquina do mundo


Antonio Cícero – Folha, 07/08

COMO SE sabe, um dos maiores poemas de Carlos Drummond de Andrade é “A Máquina do Mundo”. A ideia de que o mundo era uma máquina esteve em voga desde a Antiguidade até a Renascença. No poema de Drummond, a máquina do mundo abre-se para o poeta em determinado momento, oferecendo-lhe uma “total explicação da vida”.
Quando isso ocorre, ele, que por longo tempo havia buscado exatamente essa explicação, enigmaticamente a desdenha. Por quê? Penso que o poeta não só não acredita mais na possibilidade de tal explicação como não mais a deseja.
Se, na Idade Média, a máquina do mundo ainda parecia capaz de se abrir, é porque era tida como finita e fechada. Camões, na Renascença, ainda a descreve como um rotundo globo cercado por Deus. Ela era fechada por possuir um princípio oculto à percepção imediata.
Esse princípio pertencia a uma ordem superior à ordem dos fenômenos que explicava. Era concebível que ele se revelasse se, por exemplo, assim quisesse Deus.
Era concebível que se revelassem as causas, a origem e a finalidade do mundo. Era concebível que se retirassem os véus que encobriam o seu mecanismo. Era concebível que a máquina se abrisse.
O mundo moderno, por outro lado, não é fechado em nenhum sentido. A rigor, não se pode nem sequer falar de um único mundo moderno.
O universo que habitamos é, do ponto de vista epistemológico, isto é, do ponto de vista do conhecimento, infinito.
Não é possível que haja um princípio positivo último e inquestionável que constitua a chave do nosso universo, porque o princípio metódico de toda a filosofia e ciência é exatamente a dúvida radical, que, em última análise, mostra que tudo o que é concebível poderia não ser, ou poderia ser de outro modo: que tudo é contingente.
Ao mesmo tempo, nosso universo é também aberto no sentido de não ter portas fechadas nem fechaduras, nem véus. Tudo está à vista e não há nada por trás: ou melhor, aquilo que está por trás o está apenas circunstancialmente, pois pertence à mesma ordem ontológica -à mesma ordem do ser- à qual pertence aquilo que está na frente.
Dada sua infinitude epistemológica, sempre haverá alguma coisa por conhecer, mas ela será, a cada passo, uma coisa diferente.
Podemos, em princípio, saber como qualquer coisa funciona, mas não há coisa alguma que permaneça por trás de tudo.
Por isso mesmo, não há chave que abra o nosso universo como um todo nem revelação que o explique. Trata-se de um universo cuja totalidade patente permanece para sempre -não apenas de fato, mas de direito- inexplicável.
É a partir dessas constatações que se entende o paradoxo de que, ao ver se entreabrir a máquina do mundo, o poeta tenha desdenhado “colher a coisa oferta/que se abria gratuita” a seu engenho.
A ciência que oferecia tal explicação total era “sublime e formidável, mas hermética”. O adjetivo “hermético” se refere, em primeiro lugar, é claro, a Hermes Trismegisto, patrono das ciências herméticas ou ocultas que tanta voga tiveram na Idade Média. A partir desse sentido, “hermético” quer dizer, nos nossos dias, “fechado de maneira a impedir a saída ou entrada de ar”.
Tendo aberto o universo, o homem moderno, claustrofóbico, não consegue consentir em regressar a um mundo essencialmente fechado, nem mesmo quando o fechamento se apresenta como a condição de alguma “abertura”, a fechadura, a condição de alguma “chave” ou o segredo, a condição de alguma “revelação”.
Se o poeta desdenha “colher a coisa oferta/que se abria gratuita” a seu engenho, é que a razão já lhe mostrou que a aceitação de uma “total explicação do mundo” não pode ser senão o mergulho em mais uma ilusão, que inevitavelmente lhe custará mais uma desilusão.
É, pois, com ironia que chama de “gratuita” a “coisa oferta”, no momento mesmo em que explica havê-la desdenhado, “incurioso e lasso”.
Segundo ele, um dom tão dúbio e tardio -não apenas em relação à idade individual do poeta, mas, principalmente, em relação à época moderna do mundo- já não lhe era “apetecível, antes despiciendo”.
Sem abrir mão da sua liberdade e ironia, avaliando o que perdeu ao abandonar o mundo fechado, o poeta segue o seu caminho “de mãos pensas” ou, como se lê no poema “Legado”, “a vagar taciturno entre o talvez e o se”.

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Flores


Um vaso delas, em pleno jardim.

 

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