Escrever


Tenho muita vergonha de tudo que escrevo aqui no blog. Mesmo o que escrevi lá atrás eu não releio. Logo, a chance de daqui a um tempo isso não ser relido é grande. Invejo a escrita que sobrevive ao tempo. Que passa por mim em algum instante e, quando repassa, eu ainda a sinto e penso, saco, isso me diz algo. De alguma forma, atesta que eu sigo aqui.  E que tem gente que seguiu (e muito bem) antes.  [humm, ter alguém assim não é pedir muito, é? hahaha]

….

Tá bom, quero alguns homens e paisagens assim. Não quero escolher um ou o mundo. Quero um e o mundo. Uns e uns mundos. I-mundos. Sim, as coisas feias, também. E os “não”. Nões. Prósperos, pra além de hoje.

[correndo pra não dizer muito e querer apagar mais]

É o espetáculo do mundo que nos invade e deslumbra. Nas horas vagas.lacoiffure matisse

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é de ladinho que eu lhe acho


“Era o homem mais alto que se podia imaginar, com uma cara de moleque sapeca dentro de um interminável sobretudo preto que mais parecia a sotaina de um viúvo, e tinha os olhos muito separados, como os de um bezerro, e tão oblíquos e diáfanos que poderiam ser os do diabo se não estivessem submetidos ao domínio do coração.” – García Márquez, sobre Julio Cortázar.

em:

‘… de qué sirve escribir midiendo cada frase,’

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Le mots


Só esse espelho crítico lhe oferece a própria imagem. De resto, esse velho edifício ruinoso, minha impostura, é também meu caráter: a gente se desfaz de uma neurose, mas não se cura de si próprio. Gastos, obliterados, humilhados, encantoados, passados em silêncio, todos os traços da criança remanescem no quinquagenário. A maior parte do tempo se acaçapam na sombra, espreitam: ao primeiro instante de inadvertência, reerguem a cabeça e penetram em pleno dia sob um disfarce. (J-P. Sartre, Le mots)

sorri

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O amor é um cão dos diabos


“Nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos.” (Freud)

e

AMOR FEINHO
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

da dona Adélia Prado

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Sobre destroços


Varsóvia, 1946. Por Michael Nash.

[Você transforma o horror. Tem que transformar. – Waly Salomão ]

varsovia

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Christian Larsen


tem, tem de guardar, sim

 

christian larsen

 

Verdade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(Carlos Drummond de Andrade)

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Man Ray


man ray cat

 

“A coerência é o último refúgio dos que não têm imaginação.” (Oscar Wilde)

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Ana


Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É
prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade
que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.
(Ana Cristina Cesar) photo (69)
(lá no Merça, um dia desses)

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Amigas


Quero falar sobre as mulheres. Não de todas, mas de algumas que tenho escutado com certa frequência e com as quais compartilho muitas coisas.

É muito impressionante a quantidade de amigas que eu escuto se questionando se estão no caminho “certo” sobre o ser mulher. Amigas já maduras (até pelo tipo de questionamento) que deram um passo além, que estão longe de um clichê de feminilidade e que não precisam demonstrá-la mantendo uma constante de vestimentas ditas femininas ou interesses e comportamentos considerados como tais. Essas mulheres apresentam, da mesma forma, fragilidade, porque isso não é privilégio de algum gênero. No entanto, parece que quando não relacionada a certos modelos, a fragilidade  – que fica, então, associada à feminilidade – não é tolerada por alguns homens.

Enfim, esse texto é só um desabafo de carinho pra essas minhas amigas que em algum momento perdem a fé no seu próprio trajeto. E pra dizer que uma relação pode não ser uma competição. O vínculo vem quando você confia, sem medo, a sua falta ao outro, e você tampouco recebe a do seu companheiro  como ameaça, mas como confiança. Quando o outro deixa de ser o culpado por aquilo que você não tem, mas o confidente daquilo que lhe falta. Quando você pode respirar aliviada por sentir o amor como alguma forma de suplência às loucuras do dia a dia.

Não percam a fé de serem especiais na sua singularidade.  Amor vem de amor – e se amamos, é porque há algo de amável em nós.

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Me diz o que você achou?


Vocês se lembram do mito de Orfeu e Eurídice?  Bem resumidamente: eles se casam, Eurídice morre após uma perseguição. Orfeu, desesperado, decide descer ao mundo dos mortos para vê-la, vale-se de sua lira para lá entrar, faz um belo discurso e consegue uma chance de trazê-la dos infernos. Permitem, inusualmente, que ele a traga de volta, com uma condição: ele não podia se virar pra olhar pra ela antes que chegassem à superfície.  E assim vão, Orfeu segue andando na frente, Eurídice atrás, ambos a caminho do mundo dos vivos. Mas eis que, depois de muito andar, já quase sob a luz do sol, Orfeu se vira pra dar aquela olhadinha e conferir se Eurídice está ali mesmo e… pluft! : ela começa a ser arrebatada num turbilhão, eles estendem os braços tentando um último abraço, mas só ar é o que retêm. Ele a perde para sempre.

A história do músico trácio (que não termina onde eu parei) é usada como analogia para muitas categorias, depende do interesse.  Colocam-no como filósofo em busca de conhecimento, músico que personifica a música e o ritmo das coisas, vidente fundador de ritos dionisíacos, astrólogo e até missionário em terras bárbaras, com uma, digamos, função civilizatória.  O momento em que tudo vai pelos ares, no entanto, é o que me chama a atenção.  A hora em que Orfeu se vira para, discretamente, conferir que Eurídice estivesse ali – e nisso tudo se perde.

Cogito, ergo sum. A dúvida é meu tema aqui.  Nesse mito, quando Orfeu se vira pra dizer “você está aí, ‘né’?”,  é nesse ‘né’ que ele perde Eurídice.  O problema não é a dúvida – impossível avançar sem ela. O problema é a busca da confirmação autorizante do pensar para poder prosseguir, confirmação que, na sua ausência, deixa paralisado. Esse “né” seria a busca da segurança, um ‘olha, eu não estou sozinho, estou?’, literalmente. É muito difícil assumir que, em última instância, nada é sem risco. Estamos apresentando sem ensaio, desenhando sem esboço, como naquele trecho do começo d’ A insustentável leveza do ser.

De Descartes a Lacan. A cena do questionamento de Orfeu trouxe-me ainda outra imagem:  a do analisando no divã, buscando a confirmação do analista para os seus cogitos. No silêncio do analista, que muita gente que já viu algum filme do Woody Allen diz ser o silêncio mais bem pago do universo, reside justamente a angústia de não obter uma confirmação, de não ter um “curtir” pro post colocado.  É o silêncio que, de certa forma, lhe diz, olha, talvez agora você esteja sozinho, sim. E é assim que você vai se ligar aos outros. Se interessar.

 

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