Me diz o que você achou?


Vocês se lembram do mito de Orfeu e Eurídice?  Bem resumidamente: eles se casam, Eurídice morre após uma perseguição. Orfeu, desesperado, decide descer ao mundo dos mortos para vê-la, vale-se de sua lira para lá entrar, faz um belo discurso e consegue uma chance de trazê-la dos infernos. Permitem, inusualmente, que ele a traga de volta, com uma condição: ele não podia se virar pra olhar pra ela antes que chegassem à superfície.  E assim vão, Orfeu segue andando na frente, Eurídice atrás, ambos a caminho do mundo dos vivos. Mas eis que, depois de muito andar, já quase sob a luz do sol, Orfeu se vira pra dar aquela olhadinha e conferir se Eurídice está ali mesmo e… pluft! : ela começa a ser arrebatada num turbilhão, eles estendem os braços tentando um último abraço, mas só ar é o que retêm. Ele a perde para sempre.

A história do músico trácio (que não termina onde eu parei) é usada como analogia para muitas categorias, depende do interesse.  Colocam-no como filósofo em busca de conhecimento, músico que personifica a música e o ritmo das coisas, vidente fundador de ritos dionisíacos, astrólogo e até missionário em terras bárbaras, com uma, digamos, função civilizatória.  O momento em que tudo vai pelos ares, no entanto, é o que me chama a atenção.  A hora em que Orfeu se vira para, discretamente, conferir que Eurídice estivesse ali – e nisso tudo se perde.

Cogito, ergo sum. A dúvida é meu tema aqui.  Nesse mito, quando Orfeu se vira pra dizer “você está aí, ‘né’?”,  é nesse ‘né’ que ele perde Eurídice.  O problema não é a dúvida – impossível avançar sem ela. O problema é a busca da confirmação autorizante do pensar para poder prosseguir, confirmação que, na sua ausência, deixa paralisado. Esse “né” seria a busca da segurança, um ‘olha, eu não estou sozinho, estou?’, literalmente. É muito difícil assumir que, em última instância, nada é sem risco. Estamos apresentando sem ensaio, desenhando sem esboço, como naquele trecho do começo d’ A insustentável leveza do ser.

De Descartes a Lacan. A cena do questionamento de Orfeu trouxe-me ainda outra imagem:  a do analisando no divã, buscando a confirmação do analista para os seus cogitos. No silêncio do analista, que muita gente que já viu algum filme do Woody Allen diz ser o silêncio mais bem pago do universo, reside justamente a angústia de não obter uma confirmação, de não ter um “curtir” pro post colocado.  É o silêncio que, de certa forma, lhe diz, olha, talvez agora você esteja sozinho, sim. E é assim que você vai se ligar aos outros. Se interessar.

 

  1. #1 by Cesar on August 18, 2011 - 3:22 pm

    Não apenas a dúvida. mas também o arrependimento é paralisante.

  2. #2 by Marcia Ferreira on August 19, 2011 - 4:08 am

    Mas não tem jeito… a gente sempre vai dar aquela espiadinha.

    • #3 by Claudia on August 20, 2011 - 8:54 pm

  3. #4 by Rafael Daud on August 20, 2011 - 7:53 pm

    Curti.

Leave a comment